Primeiro coral trans de Curitiba, projeto da UFPR dá voz à diversidade

O Dia da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro, tem o objetivo de promover reflexões sobre a cidadania das pessoas trans travestis, transgêneros e não-binárias

Tradicionalmente, a divisão de vozes em naipes — baixo, tenor, contralto e soprano — envolve a classificação de voz aguda como feminina e, grave, como masculina. A definição de tipos vocálicos por gênero, entretanto, pode representar uma barreira para vozes silenciadas por grande parte da sociedade.

Essa questão foi levantada por uma estudante do curso de Música da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a partir de suas próprias experiências como coralista trans de voz grave, e a levou a pensar sobre as dinâmicas de formação de corais.

“Eu, sendo uma mulher trans de voz grave, ocupava alguns naipes que em muitos coros são chamados de vozes masculinas. Ao passar pelo processo de transição, esse tipo de tradição relacionada à voz e gênero se torna muito desconfortável”, relata Manu Santos.

“Não há necessidade de colocar gênero nesses sons. A insegurança entre a voz e a identidade é algo muito forte”.

A reflexão foi o primeiro passo para a criação de um projeto que envolve mais de 30 pessoas trans em Curitiba, o coral Llista Trans, idealizado e regido por Manu. Os encontros do grupo acontecem semanalmente no Departamento de Artes da UFPR, com apoio voluntário de estudantes da UFPR e UTFPR. A iniciativa é desenvolvida em parceria com o projeto de extensão Laboratório de Práticas e Ensino de Canto do curso de Música da UFPR (Labvox), coordenado pela docente Viviane Kubo.

A regente destaca que pensar em estratégias pedagógicas relacionadas à criação de um coral formado por pessoas trans é uma tarefa complexa e em desenvolvimento, com pouco material teórico como referência.

“É importante estar atenta às diferentes questões e especificidades de pessoas trans, como desafios socioeconômicos e individualidades relacionadas ao processo de transição de cada pessoa”, afirma.

O repertório da llista é composto por músicas que representam vivências da comunidade LGBTQIAPN+ e questões sociais, como transfobia, racismo, intolerância religiosa e capacitismo. A seleção também é adaptada às características do grupo, que possui, em sua maioria, pouca experiência com música.

Coral Llista Trans. Foto: Joyce Firszt

Por meio de parcerias com a coordenação de cultura da universidade, o coral já se apresentou em eventos acadêmicos como Feira do Livro e Siepe. Para o futuro, o grupo pretende conquistar apoio para garantir a continuidade das atividades, além de ampliar a atuação e se apresentar em outros importantes espaços culturais, como o Teatro da Reitoria. 

“Acredito que o projeto possui uma força em relação ao senso de pertencimento e comunidade de pessoas trans e travestis. Meu objetivo é poder criar diálogos com espaços de ensino de música da UFPR e trazer pautas e diálogos sobre as necessidades de coralistas trans”, conclui a regente que pesquisou, em seu trabalho de conclusão de curso, a pedagogia vocal para pessoas trans e travestis, envolvendo questões como a hormonização (uso de hormônios por meio de prescrição médica para transformações corporais), a exclusão e a transfobia, entre outros fatores sobre a identidade de pessoas trans.

As inscrições para novos coralistas abrem no mês de fevereiro e as atividades retornam juntamente com o início do calendário acadêmico da UFPR, em março. 

Acompanhe as redes sociais do projeto aqui.

Identidade das vozes

Desde muito jovem, Akin se entende como homem trans. A transição aconteceu aos 21 anos e, desde então, ele busca conviver mais com pessoas que tenham as mesmas vivências. Foi neste contexto que o estudante de Farmácia da UFPR passou a integrar a Llista Trans.

“É um projeto que ultrapassa as barreiras da música, um espaço de acolhimento, pertencimento e afirmação de vida e de cultura das pessoas trans”, conta.

Akin também destaca a condução do projeto realizada pela regente Manu. “É excepcional, traz sempre uma visão e um contato muito humano. É como se a música fosse um sentimento que permitisse essa sincronia tão bonita”.

Apesar do grupo ser considerado iniciante, alguns integrantes já possuíam familiaridade com a música. Sarah Leona Gaspar de Oliveira ministra aulas de canto coral para pessoas idosas. Ela se considera “privilegiada” por ter recebido apoio da família para a transição, iniciada há quatro anos. 

“Eu vejo a iniciativa do coral como um lugar de ampliar horizontes, sejam eles profissionais, pessoais ou íntimos, porque ali a gente se conhece, se encontra no outro e compartilha nossas histórias sem receios, com a liberdade de nos sentirmos seguros”, afirma a musicista.

Lana Alberici Rieke também já trabalhava com música e descobriu-se trans no final de 2023. Após um período de isolamento, começou a participar do coral em 2024, ainda sem a dimensão do quanto seria importante em sua trajetória. Ela conta que o projeto mudou de maneira radical a forma como compreende a voz. 

“É uma das melhores coisas que já participei, a Manu conseguiu juntar coristas experientes ou não e fazer um coro lindo, onde todos têm seu espaço e aprendem com ela a cantar”, diz Lana que pretende prestar vestibular na UFPR este ano.

Os coralistas destacam a relevância afetiva do vínculo criado entre eles. Jô Lopes da Silva Anselmo é servidora pública e diz que o grupo possibilita o encontro de pessoas que têm interesse pela arte e pelo movimento cultural. Foi com o apoio dessa rede criada pelo coral que Jô decidiu iniciar sua transição.

“Respeitamos as pessoas em seus processos, tem gente que chegou transitado, tem gente transitando, tem gente que procurou o coral e por conta disso iniciou ou acelerou o processo de transição, como é o meu caso. Sinto que me ajudou, me fez perceber que é com essas pessoas que eu me identifico. Em uma sociedade que desfavorece as nossas escolhas, este encontro favorece que a gente siga em frente”, conclui.

Llista Trans

A criação da identidade visual e do próprio nome do coral contou com a participação da design Letícia Anne Ribeiro Dias. Incentivada a contribuir com a ideia da amiga Manu, Letícia desenvolveu as primeiras artes visuais para a divulgação da proposta. “Me animei em ajudar, pois entendia a importância disso para ela”, lembra.

O termo llista trans foi escolhido pela popularidade da terminologia entre a comunidade trans, gerando identificação entre os pertencentes. Proposto pela designer, o nome faz referência às listas trans que garantem acessibilidade, com o direito de entrada gratuita ou valor reduzido para pessoas trans em eventos culturais. “A escolha do nome levou em consideração a importância da inclusão e os desafios que a população trans enfrenta, como exclusão social e vulnerabilidade”, destaca Manu em seu TCC. 

A junção gráfica das primeiras letras também deu origem à logo do projeto. “Ela faz menção direta à bandeira trans em junção com a música, por meio da letra musical colcheia. Todos esses elementos resultaram na apresentação visual que vemos atualmente, mas que também se estendeu ao padrão de linhas que representam as ondas sonoras transitando entre as composições”, explica Letícia.

A profissional desenvolve a composição visual e escrita do projeto, com o objetivo de transmitir o senso de integração e diversidade através da música, propondo uma linguagem que seja afetiva e gere conexão entre as pessoas. Além disso, Letícia também atua no apoio administrativo do coral.

“A importância cultural e social do projeto está diretamente ligada à criação de um espaço seguro para a expressão da diversidade, pautado na conexão e respeito ao outro. Um projeto como a llista trans surge para dar voz e estabelecer diálogo com uma sociedade que, até o momento, ainda custa a reconhecer a existência e vivência de pessoas que fogem aos moldes”, destaca.

“O coral nos ensina que cada pessoa deveria ter o direito de ser quem é e viver a sua essência genuinamente; reconhecer a llista como um projeto que realça a autenticidade inspira que mais projetos como este possam emergir”.

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